Caetano Veloso - Caetano Veloso e Jorge Mautner (eu näo peço desculpa) - 2002
1. Todo errado
(Jorge Mautner)
2. Feitiço
(Caetano Veloso)
3. Manjar de reis
(Jorge Mautner, Nelson Jacobina)
4. Tarado
(Caetano Veloso, Jorge Mautner)
5. Maracatu atômico
(Jorge Mautner, Nelson Jacobina)
6. O namorado / Urge Dracon
(Caetano Veloso, Jorge Mautner )
7. Coisa assassina
(Gilberto Gil, Jorge Mautner)
8. Homem bomba
(Caetano Veloso, Jorge Mautner)
9. Lágrimas negras / Doidão
(Jorge Mautner, Nelson Jacobina)
10. Morre-se assim
(Jorge Mautner, Nelson Jacobina)
11. Graça Divina
(Caetano Veloso, Jorge Mautner)
12. Cajuína
(Caetano Veloso)
13. Voa, voa, perereca
(Sergio Amado)
14. Hino do Carnaval Brasileiro
(Lamartine Babo)
Comentários:
As risadas e os sustos que as conversas com Mautner sempre provocam, excitaram minha imaginação de modo especial nos encontros que tivemos, entre outubro e dezembro de 2001, o que me levou a desejar fazer um disco em colaboração com ele. A amizade que mantemos desde que nos vimos pela primeira vez, em Londres, no começo da década de 1970, é e foi sempre muito importante para mim. Mas nunca tive tão clara em minha mente a pergunta sobre minha verdadeira ambição quanto durante esses papos mais recentes: certamente o que ambiciono não é a fama e menos ainda a riqueza "material"; será a poesia?, a política? ou... a profecia? Foi essa hipótese da ambição profética que me levou a propor a Mautner o disco conjunto. Porque Jorge é uma improvável mistura de paganista com profeta de Israel. Daí é que vem o fascínio que sua curiosa personalidade paraliterária, paramusical, e parapolítica (sua instigante personalidade tout court) exerce sobre mim. Sem dúvida, é dessa combinação que vieram suas inclinações de adolescência para liderar movimentos com características quase fascistas, o que, paradoxalmente(?), o levou aos altos círculos do Partido Comunista e, sobretudo, à produção de um romance assombrosamente forte chamado "Deus da Chuva e da Morte". A experiência, na extrema juventude, de debruçar a imaginação mítica sobre informações secretas da política pesada deu-lhe uma visão única (e mais contraditória na aparência do que na realidade) de como se joga com o poder no mundo. Uma visão que ele não cansa de reconstruir, me virar, atualizar.
Os terríveis acontecimentos de 11 de setembro de 2001, envolvendo Nova Iorque, cidade amada por ele e por mim, e repercutindo na situação de Israel, país que adoramos, e no vasto Islã, que nos fascina e nos remete à pergunta pelo destino da idéia central do povo Judeu, o Monoteísmo, nos levaram a conversas sobre o mundo, o Brasil, a vida dos homens. Nessas conversas, às vezes eu sentia medo. Pois bem: foi para espantar o medo que decidi pedir a Jorge que deixássemos tudo desaguar em canções. Depois de vê-lo, no carnaval de 2002, em Salvador, cantar o "Hino do Carnaval Brasileiro", num trio elétrico, em meio a um verão singularmente amargo para mim, entendi que o disco teria que ser feito logo que eu voltasse para o Rio. As canções que fizemos não lembram ou ilustram essas conversas de que falei. São, em geral, canções pop-paródicas: elas exibem o distanciamento que Mautner mantém em sua permanente metamorfose apaixonada. Fazem rir e podem fazer chorar. Algumas eu fiz sozinho, mas não as teria feito se não fosse para um disco com Jorge Mautner.
Tudo no disco tem a ver com o clima dele ou com o clima a que ele me transporta. Hipertropicalista, porque tropicalista avant la lettre, Mautner não pode conceber o que venha a ser uma necessidade de criar-se o antitropicalismo (uma necessidade genuína que muita gente mais jovem confessa sentir o que não deve ser confundido com as, talvez, mais freqüentes manifestações de mesquinhos desejos de substituição de celebridades): ele reanima as motivações elementares daquele movimento, que são, afinal, as mesmas que movem seus principais líderes: eis por que Gil foi chamado para cantar conosco o meu "Feitiço" (uma resposta ao "Feitiço da Vila" de Noel) e para pôr música nos versos de "Coisa Assassina", de Mautner. É não apenas o Gil tropicalista que está ali: é o Gil que excursionou com Mautner nos anos 1980 com o show "O Poeta e o Esfomeado". Mas Mautner é hipertropicalista também porque ele não foi, à época do movimento, um tropicalista: estes eram bossanovistas que se subvertiam; Mautner era, tal como Raul Seixas, um amante do rock'n'roll e das baladas country norte-americanas (além dos samba-canções de Adelino Moreira) que exibia (até no texto de seus primeiros livros) desprezo pela bossa nova. De fato, ao gravar com ele "Todo Errado" (de onde, afinal, saiu o título do disco), pensei muito em Raul e nas coisas da letra de "Rock'n'Raul". Assim, Eu Não Peço Desculpa é também uma continuação de "Rock'n'Raul", essa canção que me parece tão grandiosa quão mal compreendida.
Gravei "Lágrimas Negras" e o "Maracatu Atômico" porque acho esta uma obra-prima obrigatória e aquela uma das mais belas canções sobre a tristeza já feitas. E porque queria pontuar o disco com lembretes do peso da obra de Jorge. Pedi a ele que escolhesse algo meu para regravar: ele chegou ao estúdio com essa "Cajuína" que ele acreditava ser puramente nordestina e se revelou tão eslava em sua voz e em seu violino que, Kassin, que produziu o disco comigo (ou para mim), resolveu adicionar palmas e um fole (que às vezes toca uma terça menor em choque com a terça maior de um acorde recorrente). Sem Kassin, aliás, esse disco não seria o que é. Kassin, que conheci através de Moreno que, por sua vez, o conheceu por intermédio de Pedro Sá é um talento imenso e muito peculiar. Totalmente do mundo dos novos mini-estúdios com pro-tools, informadíssimo, inspiradíssimo, ele tem tão pouco medo do ridículo quanto Mautner e a mesma capacidade de estar sempre roçando a paródia. Tem também um suingue inacreditável. Seu baixo bate no tempo de modo tão gostoso e moderno (sem fazer sotaque de baixista suingado de jazz-fusion) que parece que não tem ninguém tocando, que é o próprio tempo dizendo-se, sem um ego chato para atrapalhar. Pedro Sá, Davi, Domênico, Moreno e outros músicos convidados entravam e saíam da sala minúscula do estúdio.
Nelson Jacobina estava sempre lá: o grande Nelson, o Carneirinho, principal parceiro de Jorge (não só o mais freqüente como também co-autor das obras-primas). Fabiano, pilotando, só transmitia tranqüilidade, doçura e segurança. Tarta, quase que só doçura. Havia também uma foto da Luana Piovani pregada na porta, do lado de dentro do estúdio. Dizíamos que ela era a nossa padroeira: ela foi a madrinha da bateria do nosso samba. Um dia eu a levei lá. Em carne e osso. Parecia uma visão irreal. Ela ficou até o fim da sessão. Todos os rapazes ficaram extasiados. Ninguém se recuperou ainda direito. Quem canta seus males espanta. Este disco é para a gente atravessar esses tempos de homens-bomba, especulação globalizada, dengue e insegurança. Com a ajuda da lua de Jorge e das Luanas chegaremos vivos a um outro ambiente.
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